Numa altura em que a impermanência está mais visível para todos, é talvez o momento certo para questionarmos profundamente onde reside a origem de todo este medo que está a assolar tantos Seres Humanos e em simultâneo. E de questionarmos se temos um refúgio verdadeiramente sustentável.
Vivemos tempos que não têm paralelo na história conhecida da humanidade. Vivemos num mundo tecnológico, onde a sociedade dos países ditos modernizados goza de conforto, de um cem número de serviços que proporcionam uma sensação de segurança. Serviços de saúde, de protecção social, meios de deslocação de fácil acesso, um conjunto de leis que asseguram os nossos direitos, divertimentos e distracções (como filmes, saídas com amigos, música, e por aí fora).
A nossa casa é o nosso refúgio, a nossa família é fonte do nosso amor e os nossos empregos fonte da nossa realização. Obviamente que todos somos diferentes. Mas creio que, genericamente, confiamos muito neste sistema. E procuramos a nossa felicidade e dar significado à nossa vida dentro deste sistema.
O nosso mundo colocado em causa
Para grande parte das pessoas, as necessidades básicas como alimentação, abrigo, segurança, educação e cuidados de saúde estão asseguradas de alguma forma. Para nós, tudo isso existe e é um direito que temos. E é precisamente toda esta estrutura que, agora, este vírus colocou em causa.
Creio que este vírus veio demonstrar que vivemos literalmente sob telhados de vidro. Todos estes fatores, que são fonte do nosso refúgio, revelam-se agora frágeis, impermanentes e não mais poderemos usufruir deles como antes.
Bastou um pequeno micro-organismo, que nem conseguimos ver, para colocar tudo em causa e, de certa forma, parar as nossas vidas. De repente, não podemos sair de casa, não podemos viajar, estamos impedidos de estar com os nossos entes queridos, para muitos a fonte de rendimento desapareceu ou está condenada.
Tudo parece desmoronar e a única solução é a de ficarmos parados, imóveis, entregues a nós próprios na expectativa de que tudo passe rapidamente para podermos voltar às nossas vidas. Sim, porque neste momento a nossa vida está suspensa, à espera de retomarmos logo que possível, logo que tudo isto passe. Neste momento não vivemos, mas ansiamos que a nossa vida volte, como se ela estivesse à nossa espera num dado lugar.
Tínhamos mesmo a saúde, a família e o dinheiro assegurados?
É então que surge o medo. O medo de não conseguirmos manter os nossos empregos, o medo de não termos dinheiro suficiente, o medo de estarmos sozinhos, o medo de perdermos os nossos familiares, o medo da doença, o medo da morte. O medo de que tudo isto aconteça, como se tudo isto não pudesse acontecer antes de o vírus aparecer.
Antes do vírus, seria garantido que teríamos os nossos empregos assegurados? Seria garantido que estaríamos para sempre com os nossos familiares? Seria garantido que não iríamos adoecer? E seria garantido que um dia não teríamos de partir deste mundo?… Creio nenhum de nós pode responder afirmativamente a nenhuma destas questões.
Não estamos preparados para perder o que julgamos possuir
Então, se tudo o que pode acontecer agora já era possível acontecer antes, porque temos medo?
Só me ocorre dizer que este medo surge do facto de não estarmos preparados para perder nada do que julgamos possuir. O medo surge da crença, do dogma, de que tudo o que temos e de tudo o que disfrutamos é inerentemente nosso e é permanente no tempo. Pelo menos, permanente no sentido em que sempre que eu queira, posso usufruir deles. Dependendo, isso, só de mim.
Ora, o contexto atual veio demonstrar que isso não é verdade. O objeto do nosso refúgio e da nossa fonte de felicidade é frágil e pode desaparecer num ápice sem que nada nem ninguém o possa prever. E quando vemos que a nossa fonte de felicidade é colocada em causa e que a podemos perder, sofremos, temos medo.
Ao acreditarmos que tudo se manterá para sempre como era, e vivendo dessa forma, estamos condenados à desilusão e ao medo. As condições exteriores favoráveis podem perdurar algum tempo, dando-nos a ilusão de que será sempre assim. E durante algum tempo podia, até, haver argumentos para ter essa ilusão. Durante toda a vida de muitos de nós e dos nossos pais, estes factores foram perdurando.
Todos estamos sujeitos à impermanência dos fenómenos
Se olharmos para o mundo, sempre houve pessoas que passaram e que passam por situações semelhantes à que estamos a passar agora, e bem piores, durante toda a sua vida: falta de segurança, doença e morte. A ilusão de que tudo isto era distante e estava apenas destinado aos desafortunados de certos países, começa agora a cair por terra.
Todos estamos sujeitos à impermanência dos fenómenos, todos estamos sujeitos à doença e à morte. É uma questão de tempo… No fundo, não se pode dizer que tenhamos a liberdade que tanto queríamos. Nenhum governo, nenhum sistema de saúde ou de protecção social nos poderá proteger indefinidamente de todos os fenómenos exteriores. É tão somente assim que as coisas são, é a natureza de todas as coisas deste mundo.
Precisamos de um refúgio sustentável, fonte de Liberdade e Paz
Será então possível encontrar um refúgio que seja sustentável e que permaneça, que não seja tão dependente das condições exteriores? Haverá uma fonte de verdadeira liberdade e paz que é ultimamente independente de tudo isto? Julgo que este é o momento de colocar estas questões. É o momento de colocarmos em causa as nossas prioridades de sempre, de colocarmos em causa os objetos em que nos refugiamos diariamente. Será que a minha satisfação depende apenas destas condições ou será que é a forma como eu vejo o mundo que é a verdadeira causa do meu sofrimento?
Não estará a nossa perspectiva desajustada com a realidade, será que tudo isto é intrinsecamente negativo ou haverá também aspectos positivos a retirar? Não será também isto uma oportunidade para despertar a nossa atenção para aquilo que é verdadeiramente importante?
Desprendimento e aceitação
Para existir transformação e adaptação penso que primeiro tem de haver aceitação. Temos de aceitar a situação atual. Aceitar de uma forma leve que não estamos a perder nada, apenas estamos a tomar consciência que nada disto foi alguma vez nosso, e que apenas acreditámos ingenuamente que assim era. Este desprendimento e aceitação poderá criar uma abertura para que o nosso medo diminua, a ansiedade diminua, que a nossa mente estabilize, que a paz interior volte, e que surja a lucidez para podermos ter a atitude certa e tomar as decisões de uma forma mais consciente sem medo do resultado.
Não há nada a perder, porque nada é verdadeiramente nosso
Se não tivermos medo de perder o que nunca poderia ser nosso para sempre, então não teremos nada a perder. Se não há nada a perder, não há medo nem ansiedade e estaremos disponíveis para ajudar aqueles que mais precisam.
Assim, tornamo-nos numa fonte de luz tal como um farol que guia os barcos perdidos no mar e que não é afectado por qualquer tempestade que possa ocorrer.
“Entre o estímulo e a resposta há um espaço. Nesse espaço está o nosso poder de escolher a nossa resposta. Na nossa resposta está o nosso crescimento e a nossa liberdade.” ~ Victor E. Frankl
* Vitor E. Frankl foi um neuropsiquiatra austríaco que sobreviveu ao encarceramento num campo de concentração nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Autor do “best seller” “Man’s Search for Meaning”
Se estiverem interessados em saber quais os conselhos de monjas que vivem em clausura para estes tempos em que estamos em “clausura”, nas nossas casas, consulte este artigo.
Uma resposta
Brilhante! Muitos parabéns pelas sábias palavras.